quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O Outro Lado de Carlito (Carlos Drummond de Andrade)

"Sou dos que admiram profundamente Carlito. Dos que enxergam atrás da figura grotesca o sentimento da dor machucada, de ironia melancólica e sem outros meios para se exprimir o ridículo cotidiano. Enfim, sou dos que acham Carlito triste, um pouco por natureza e um pouco pelos acréscimos sucessivos que críticos e artistas fizeram à sua personalidade. Porque parece justo distinguir entre o Carlito inicial, amargo sem dúvida, mas positivamente sem uma filosofia e sem uma estética próprias, e o “caso Carlito” o “fenômeno Carlito”, que Elie Faure, Jean Cocteau, Paul Morand, Henry Poutaille, Wells e tantos outros vêm comentando e discutindo em livros que davam para encher uma estante. O “crescimento moral” de Carlito faz-me pensar nesse ser estranho que é o artista, criador de mundos e criatura ele próprio, tão sujeito às leis do mundo exterior, ao seu sistema de influências e pressões, como os seres que a sua imaginação tirou do nada e pôs no papel, no palco ou num pedaço de tela. Hoje Carlito tem um sentido de que não suspeitávamos (nem ele) ao tempo daquelas velhas e extravagantes comédias em um ato do Keystone. E se o público em geral continua a pedir-lhe apenas aquilo que é a feição superficial de sua arte, a sua macaquice silenciosa e irresistível, nós outros pedimos mais, porque queremos rever, em cada “film” novo, o desencanto, a perplexidade, a malícia, a piedade, a tristeza e o sonho de Carlito, ou seja, o espectro de sua pantomima, o seu lado mais trágico. Afinal, Carlito foi um homem que deu a volta ao cômico. E que verificou a precariedade e a contingência do cômico, máscara tênue demais para disfarçar a seriedade profunda da vida. Mas que, sendo inteligente, não contou isso a ninguém; encheu, apenas, com a sua experiência pessoal, os filmes com que resgatou a vulgaridade do cinema norte-americano e que se chamam “Vida de cachorro”, “Ombro armas”, “O garoto”, “O circo”.
Não foi sem propósito que aluda à sua experiência pessoal. Vejo nos jornais que Carlito está noivo de sua primeira esposa, Lita Grey. Casado duas vezes, e duas vezes infeliz, o imenso poeta da cena muda não se revolta, não se recolhe a uma ordem religiosa, não cobre a cabeça de cinza, nem se consagra ao cultivo de crisantemos: casa-se de novo. E logo com a primeira mulher, cujo comércio lhe foi tão difícil e cheio de dissabores.
Há um sentido na vida de Carlito (e na sua obra também), um sentido ainda mais íntimo do que o pressentido pelos intelectuais, e que nos escapa."


Publicado no Minas Gerais, em 08/04/1930, pp. 7-8, sob o pseudônimo de Antônio Crispim.