quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Carlito (Carlos Drummond de Andrade)

"A CARLITO
Carlos Drummond de Andrade

Velho Chaplin:
as crianças do mundo te saúdam.
Não adiantou te esconderes na casa de areia dos setenta anos
refletida no lago suíço.
Nem trocares tua roupa e sapatos heróicos
pela comum indumentária mundial.
Um guri te descobre e diz: Carlito
CARLITO - ressoa o coro em primavera.

Homens apressados estacam. E readquirem-se.
Estavas enrolado neles como bola de gude de quinze cores,
concentração do lúdico infinito.
Pulas intato da algibeira.
Uma guerra e outra guerra não bastaram
para secar em nós a eterna linfa
em que, peixe, modulas teu bailado.

O filme de 16 milímetros entra em casa
por um dia alugado
e com ele a graça de existir
mesmo entre os equívocos, o medo, a solitude mais solita.
Agora é confidencial o teu ensino,
pessoa por pessoa,
ternura por ternura,
e desligado de ti e da rede internacional de cinemas,
o mito cresce.

O mito cresce, Chaplin, a nossos olhos
feridos do pesadelo cotidiano.
O mundo vai acabar pela mão dos homens?
A vida renega a vida?
Não restará ninguém para pregar
o último rabo de papel na túnica do rei?
Ninguém para recordar
que houve pelas estradas um errante poeta desengonçado,
a todos resumindo em seu despojamento?

Perguntas suspensas no céu cortado
de pressentimentos e foguetes
cedem à maior pergunta
que o homem dirige às estrelas.
Velho Chaplin, a vida está apenas alvorecendo
e as crianças do mundo te saúdam. "


(In Lição de Coisas, Ed. Record)